Aliana Camargo
"Afetos é o nosso querer, e nele está relacionado o nosso sentir e o nosso pensar. Por ser componente condicionante para a nossa vivência, os afetos são parte importante de tudo o que a criança irá vivenciar vendo um vídeo, uma imagem no Instagram, ou um vídeo curto no Tik Tok.”
Entrevista
Você poderia se apresentar, contar um pouco da sua trajetória acadêmica e da sua vida?
Eu sou Aliana [Camargo], mãe de duas crianças, uma com o pé na adolescência. Estudei Comunicação na Universidade Federal de Mato Grosso. Desde o início da minha graduação em Rádio e Televisão, tive o interesse em estudar a comunicação aliada à educação. Tanto que o trabalho de conclusão de curso foi sobre a democratização do audiovisual nas escolas.
Depois de algum tempo decidi estudar documentários, um gênero do qual gosto desde a graduação. Fiz o mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea e estudei os webdocumentários, a cultura digital. Isso me fez olhar a linguagem da escrita audiovisual na internet.
Alguns anos depois, meu interesse aumentou quando tive meus filhos. O acesso à tecnologia por parte das crianças me fez ter interesse na relação de crianças com a mídia digital, mais especificamente o YouTube. Estudar a relação de crianças com a tela tão acessível me pareceu natural, uma vez que, como mãe, já me sentia neste universo de telas e a tentativa de mediação de muita informação.
Em 2018, inicio o doutorado no Programa de Pós-graduação em Educação da UFMT, sob a orientação da professora Kátia Morosov. O meu grupo de pesquisa é o Laboratório sobre Tecnologia da Informação e Comunicação na Educação (LeTece). Na academia, falamos sobre o objeto de estudo, e eu fui em busca de entender o que estava na relação da criança com a mídia digital, o que chamamos de entre.
Desde o início, a minha orientadora me incentivou a estudar o bielo-russo Lev Semionovich Vigotski. No começo, foi bem angustiante porque era uma área nova para mim, com conceitos e autores novos. E percebi que o que muitos sabem de Vigotski é o seu famoso conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal ou ZDP, como muitos chamam. Mas Vigotski, além de pedagogo é um grande psicólogo. Ele criou um conceito chamado perejivanie, que, numa tradução próxima do português, seria vivência, que talvez seja o mais importante dos seus conceitos, e, como morreu novo, a impressão é que ele teria um avanço muito maior nas suas pesquisas sobre a formação humana.
O meu estudo tem o conceito de perejivanie como eixo central, e busquei atualizá-lo para a vivência digital. Isso me instigou a pensar e ver as pessoas como personalidades formadas por um perejivanie e de modo bem resumido é isso que as crianças vivenciam quando estão diante da tela, uma constante perejivanie ou várias perejivanies. O que precisamos pensar, e fecho o documentário com isso, é compreender essas mudanças em âmbito social para poder educar no século 21.
O nome do documentário é Afetos - a tela mágica. O que são os afetos?
Afetos é tudo que nos provoca ação e desejos. É o nosso querer que nele está relacionado o nosso sentir e o nosso pensar. Essa tríade tem a ver com os nossos afetos. Podemos ter afetos bons e ou afetos ruins.
A palavra que é utilizada nos estudos de Vigotski vem do filósofo Baruch de Espinosa, afecção. Nascido no século XVII, Espinosa nos instiga a pensar sobre como os afetos nos provocam emoções, e como esse componente é importante para pensarmos sobre todas as nossas escolhas. Refletirmos sobre a importância de termos consciência de nossos afetos para deixarmos de ser escravos de nossas quereres, de nossos desejos.
As afecções, como propôs Espinosa, entremeiam a nossa formação pessoal, nossa personalidade e o meio ambiente no qual vivemos, é o intrasubjetivo e o intersubjetivo, é o que está entre a contração e expansão de nossas atividades.
Os afetos estão em tudo. Desde a roupa que você escolhe para ir trabalhar, até a busca racional pela escolha de um político. Os afetos são condição de nossa vivência, e a vivência é matéria-prima para os estudos de Vigotski.
A produção trata da cultura digital na infância. Como os afetos se inserem nesse contexto?
Por ser componente condicionante para a nossa vivência, os afetos são parte importante de tudo o que a criança irá vivenciar vendo um vídeo, uma imagem no Instagram, ou um vídeo curto no tiktok. Contudo, a criança tem muito forte dentro dela o querer e o sentir, o pensar ainda não está refinado na criança, quem faz esse papel mediador são os adultos.
O ser humano vai formando a si como um ser inacabado. E pensemos na questão da criança: se o adulto é o resultado direto de sua infância, a criança como ser social é a expressão do que vive e se “alimenta”. Então, para a formação dessa criança como ser social, dotado de personalidade, é importante estarmos atentos ao que ela vê e consome na cultura digital.
Como disse, os afetos podem ser bons ou ruins e quem deve definir o que a criança vai ver não é ela, e sim um adulto. Como a informação está acessível a todos, inclusive às crianças, precisamos encorajá-las a vivenciar a fase da infância de maneira saudável. E, para isso, não podemos negligenciar o que elas vivenciam quando estão sozinhas com o celular.
Tem duas falas no documentário que quero retomar aqui. A primeira é do Akira (Leonardo Akira Yamauche, uma das crianças ouvidas), quando ele vai nomeando o que ele pode vivenciar com determinado vídeo: medo, alegria, ansiedade etc. A outra fala é da professora Gisele Toassa, doutora em psicologia e professora da Universidade Federal de Goiás (UFG), quando ela trata sobre deixar as crianças sozinhas sem ter a mediação do que elas estão vendo, sem a ponderação. Será que as crianças estão recebendo essa mediação em casa ou na escola?
Por que as telas são mágicas para as crianças?
Colocar que elas são mágicas é mais uma provocação para as crianças. Será mesmo que elas são mágicas ou não? As crianças responderam a essa pergunta e fiquei entusiasmada quando duas crianças não concordaram que a tela seja mágica.
A Sophia (... Araujo Alves, a criança que atua no documentário e também faz um depoimento pessoal) respondeu que não se trata de uma tela mágica porque não apresenta o futuro; e porque, segundo ela, as telas tem regras, ou deveria ter regras claras. Achei interessante a resposta dela uma vez que realmente a tela não pode prever esse futuro, mas precisamos pensar para onde estamos caminhando.
A tela em si não é boa nem ruim. A tela simplesmente é. E por proporcionar uma nova vida muito mais dinâmica temos pontos fortes e fracos na convivência entre seres humanos, com a tela mediando. Pense retornarmos à idade média dizendo que teria uma tela que caberia na palma da nossa mão e que poderíamos comprar tudo por esta tela, e que poderíamos ver outra pessoa do outro lado do oceano, e que as crianças poderiam falar, brincar, estudar por esta tela. Se eu dissesse que existia essa tela poderia ser a fogueira como ocorreu com muitos, neste ponto de vista, com a criança que habita em mim, não deixo de ver como uma tela mágica, como uma tela “extraordinária”, como diz o João [... Lucas Ayres Dutra] no documentário.
A proposta faz uma interseção entre cultura, educação e psicologia. As falas das crianças revelam essa relação ou são as falas especializadas que estabelecem as ligações?
As crianças são muito inteligentes. As falas delas trazem sim a ideia de cultura que elas vivenciam, da utilização para aprender arte, em como elas podem sentir sim algo, mas que ainda não está tão claro para elas refletirem sobre todos esses aspectos.
Até porque elas estão na segunda infância e é somente a partir dos 13, 14 anos que vamos começar a pensar com conceitos. De modo que as professoras vão costurando falas a partir do que vamos trazendo das falas das crianças.
Esse exercício não foi tão simples para cortar, editar, porque imagina fazer um documentário entre 15 e 20 minutos que contemplasse a reflexão de um tema tão complexo como este.
Então, o documentário é ponto de partida, precisa de debate após sua exibição para que novos e outros conceitos sejam trabalhados a partir da reflexão que tentamos em tão pouco tempo discorrer sobre cultura, educação e psicologia.
Aliás, a obra prioriza vozes femininas como fontes especializadas. Por quê?
Essas vozes representam a força feminina dentro da educação, mas não foi intencional. A professora Kátia Morosov, doutora em Educação e docente da UFMT, foi minha orientadora. A Gisele Toassa, doutora em Psicologia, é especialista em Vigotski no Brasil. A Alyne Farias é psicóloga que já trabalhou Vigotski. E pensamos em alguém na área da Sociologia da Infância, o que foi muito difícil encontrarmos aqui perto da gente. Foi quando encontramos a professora Geruza Vieira, da UFMT, Câmpus Araguaia, que brilhantemente contemplou essa área. A professora Terezinha Fernandes é da Educação e trata sobre os multiletramentos. Ela não está na primeira versão e temos a intenção de editar uma parte dois do documentário. Quando vimos, as cientistas eram de mulheres fortes. Não foi intencional, buscamos as melhores referências para o documentário.
Como foram selecionadas as crianças para a gravação dos depoimentos? Houve algum cuidado especial?
Essa seleção foi realizada por mi e pela professora Yandra Firmo, pedagoga, doutora em Educação que é a nossa consultora pedagógica maravilhosa. Ela trabalha com educação e arte há muitos anos em Barra do Garças e fomos buscar referências de crianças que utilizavam a tela em seu cotidiano em maior e menor grau de acesso.
Na obra audiovisual, uma menina representa a infância em contato com o mundo digital. Como foi essa escolha?
A Sophia é a personagem que representa essa infância. A escolha foi baseada em alguns critérios. Precisávamos de uma criança que realmente utilizasse o celular, que tinha um celular disponível. E pensamos que uma criança menina e negra representasse bem a formação de nossa sociedade. Somos em maior número no Brasil constituída por mulheres e negras. Esse fato ajudou a impulsionar a nossa escolha.
Tenho orgulho de dizer que isso foi pensando em grupo e também por indicação de nossa consultora pedagógica Yandra Firmo.
A Sofia, além de todos os critérios elencados, é uma menina inteligente, doce, que estava aberta a ser direcionada, e apesar de não ser atriz, contribuiu no que estava ao seu alcance para que o trabalho tivesse uma direção.
Qual foi o maior desafio nas gravações?
Trabalhar com crianças é um dos grandes desafios. Falar com elas, deixar a conversa fluir porque elas cansavam. Ainda bem que Yandra sempre esteve por perto e ajudou muito no processo porque ela é uma ótima atriz.
A gravação com a Sophia também foi desafiadora porque não poderíamos cansá-la ao ponto de ela não querer gravar. Neste sentido, acho que eu estava nas mãos dela sem ela saber (rs).
Tentar colocar uma tese dentro de poucos minutos também foi realmente desafiador para as gravações. Utilizar a linguagem do audiovisual para passar uma determinada informação, e neste caso, uma informação acadêmica, me gerou desafios e desconforto.
Como fazer a conexão com a tela mágica, como imprimir de maneira criativa o tema dos afetos? Bom... o documentário são as escolhas que fizemos com a consciência que temos agora. Tenho certeza de que alguns anos à frente já terei mais elementos para melhorá-lo.
Por enquanto, o ato de fazer o documentário já me tirou da zona de conforto, e só este fato já é desafiador.
Escolas e familiares precisam de ajuda para pensar a relação entre as crianças e as tecnologias digitais. Como o documentário pode contribuir?
Todos nós precisamos de ajuda para pensar nesta formação humana com tanta tela. Tanta ansiedade. O tempo fluido, dinâmico, instantâneo. Como diz a professora Geruza Vieira, no seu ponto de visto sociológico, estamos perdendo a essência do processo. Queremos tudo muito rápido sem compreender que para isso precisamos amadurecer e que tem um processo, uma vivência que precisa de tempo para ser processada.
A impressão é que com um clique conseguimos tudo. E isso não é verdade. Precisamos refletir, respirar e perceber para onde vamos caminhar. Acredito que o documentário pode contribuir como ponto de partida para a reflexão do quão a cultura digital faz parte de nosso cotidiano e nossas escolhas.